Resenha | Torto Arado: uma história de resistência no campo
Resenha Torto Arado, livro de Itamar Vieira Junior
“A devorante mão da negra Morte
Acaba de roubar o bem que temos;
Até na triste campa não podemos
Zombar do braço da inconstante sorte.
Qual fica no sepulcro,
Que seus avós ergueram, descansado;
Qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos
Ferro do torto arado.”
(GONZAGA, 1792).
O trecho acima, retirado do poema Marília de Dirceu, de Tomaz Antonio Gonzaga, foi a inspiração para o título do romance de Itamar Vieira Junior, Torto Arado (2019). A conotação do poema trata da idealização de um amor intenso que o narrador sente por Marília. No entanto, a conotação da qual Itamar se apropria em sua obra, leva o torto arado por outros caminhos.
As injustiças sofridas no campo permeiam as histórias das protagonistas, Bibiana e Belonísia, duas irmãs que vivem nas fictícias terras de Água Negra, localizada na Chapada Diamantina. O lugar é retratado como uma benção para o plantio de alimento devido a água em abundância vinda do rio que permeia a região. Mas em Água Negra também reside muita tristeza. Descendentes de escravos habitam o local e trabalham para a fazenda da abastada família Peixoto. Eles não recebem salário e não vivem em condições dignas de trabalho, que é realizado de domingo a domingo. O único direito que lhes é reservado é a construção de casas de barro, feitas para não durar, e que precisam ser reconstruídas de tempos em tempos.
Os trabalhadores precisam plantar nas terras que lhe são concedidas e dar a maior parte da produção para a fazenda. O que sobra, eles podem utilizar como alimento ou vender na feira da cidade. Com o pouco dinheiro que conseguem, eles compram outros mantimentos. Itamar retrata a labuta desses agricultores familiares, que veem seu trabalho sendo desvalorizado e o fruto dele sendo tomado como se nada fosse.
Apesar dos bons períodos de plantio, Itamar também retrata a seca do semiárido e todas as consequências sofridas pelas famílias que não recebem qualquer tipo de assistência para passar por esses maus momentos. Além das longas estiagens, retrata ainda os períodos de chuva, igualmente sofridos, não só pela perda da produção, mas também pela pouca proteção que as frágeis casas de barro oferecem.
Sutério pegou a maior parte da batata-doce com as duas mãos grandes que tinha e levou para a Rural que havia deixado em nossa porta [...] Lembrou a meu pai da terça parte que tinha que dar da produção do quintal. Mas as batatas não eram produção do quintal. Da terra seca não brotava nem pasto, muito menos batata. E a secura era tanta que nem as várzeas estavam sendo cultivadas [...]. Vi a vergonha de meu pai crescer diante de nós sem poder fazer nada. Zeca Chapéu Grande era um curador respeitado e conhecido além da cerca de Água Negra. Mas ali, nos limites da Fazenda sobre domínio da família Peixoto [...] sua lealdade pela morada que havia recebido no passado, quando vagava por terra e trabalho, falava mais alto (p. 85).
Zeca Chapéu Grande é o pai das irmãs, além de ser um líder espiritual e comunitário, respeitado por todos os habitantes de Água Negra. O Jarê, religião praticada na Chapada Diamantina, é comandada por ele, que oferece seu corpo para os encantados — entidades que regem a religião —, e assim faz o bem ao seu povo curando por meio das plantas, rezas e conselhos. Todas essas questões culturais são exploradas em Torto Arado, dando uma dimensão ainda maior de como a riqueza de um povo não está apenas em seu trabalho, mas também em suas crenças, naquilo que fazem por sua comunidade, e em suas palavras.
Outros temas sociais são abordados, como a violência sofrida pela mulher do campo. Belonísia é a irmã que mais representa esse lado, tendo vivido por certo tempo ao lado de um homem que a tratou mal, além de ter testemunhado as agressões que sua vizinha sofria do marido. A valentia de Belonísia é o que compõe sua personalidade, tendo aprendido desde cedo a se virar da forma como pode devido a um incidente sofrido junto com sua irmã — episódio que estreitou o laço entre as duas, fonte central do romance.
Todas nós, mulheres do campo, éramos um tanto maltratadas pelo sol e pela seca, pelo trabalho árduo, pelas necessidades que passávamos, pelas crianças que paríamos muito cedo, umas atrás das outras, que mostravam nossos peitos e alargavam nossas ancas (p. 119).
Já Bibiana demonstra um lado mais idealista. Enquanto sua irmã se sente melhor trabalhando na terra, ao lado de seu pai, Bibiana se encontra entre os livros, na sala de aula, na luta por uma educação melhor para si e para seu povo. É ao lado do marido que ela abraça a causa em prol dos trabalhadores rurais, falando em nome de todos aqueles que passam por injustiças em Água Negra.
Apesar de toda essa riqueza de abordagens, a negritude e o racismo se destacam em Torto Arado. É impossível falar de descentes de escravos sem falar de um passado que ainda se faz tão presente na vida de todos eles. A história de seus antepassados é abafada para impedir que o conhecimento se dissemine, pois ele é a chama de todas as lutas por direitos. Quando a prefeitura da cidade resolve levar uma escola para Água Negra, os alunos estudam sobre a benevolência dos seus ricos senhores, as belas aventuras dos colonos em terras brasileiras, a importância do garimpo e a honra em trabalhar para a fazenda. Por fim, o rastro de destruição que o garimpo deixou na Chapada Diamantina, também é parte importante do romance — e um marco na história do Brasil —, levando a destruição das pessoas e dos recursos naturais.
Os homens enlouqueciam assim, esperando o amanhecer e abrindo fendas no chão onde achavam ter visto a luz entrar, para não encontrar nada. Enlouqueciam sem comer ou tomar banho, morriam dentro dos buracos ou de tentar apanhar as pedras das mãos dos que haviam encontrado [...]. Mas o diamante não nos trouxe sorte nem bambúrrio. O diamante trouxe ilusão, porque quando instalaram as dragas, os rios foram se enchendo da areia que jorrava das grutas. Os rios foram ficando sujos e rasos (p. 204-205).
O que me entristeceu ao ler Torto Arado não foi a emoção que Itamar passa com sua escrita (embora sua prosa seja impecável e encantadora, maravilhosa de ler), não foi a empatia que senti pelas dores de Bibiana e Belonísia, não foi a narração do sofrimento e das injustiças que o povo da fictícia Água Negra carregava, tampouco foram as cenas de violência e opressão descritas de forma tão brutal que eram capazes de dilacerar corações. O que me entristeceu foi ter a percepção de que o tempo parece não passar. Ainda estamos presos no passado retratado em Água Negra.
Os donos já não podiam ter mais escravos por causa da lei, mas precisavam deles. Então foi assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores. Não poderiam arriscar fingindo que nada mudou, porque os homens da lei poderiam criar caso. Passaram a lembrar para seus trabalhadores como eram bons porque davam abrigo aos pretos sem casa, que andavam de terra em terra procurando onde morar. Como eram bons, porque não havia mais chicote para castigar o povo. Como eram bons, por permitirem que plantassem seu próprio arroz e feijão, o quiabo e abóbora. A batata-doce do café da manhã (p. 204).
O racismo ainda continua mostrando sua face cruel, muitos trabalhadores do campo ainda vivem em situação análoga à escravidão, a fome ainda finca raízes entre a população rural, as mulheres camponesas ainda continuam sendo vítimas de violência e sem espaço em vários cenários, os movimentos rurais ainda são desacreditados e marginalizados, as questões da terra ainda geram conflitos e mortes, os direitos dos povos originários ainda são negados, a agricultura familiar ainda não tem o incentivo que merece e precisa... Enfim, são pautas infindáveis de resistência que Itamar levanta e que se fazem presentes na sociedade brasileira há séculos.
Torto Arado mostra uma realidade dura e cruel, sobre a qual não podemos mais fechar os olhos. O verdadeiro conhecimento sobre nosso passado e sobre a história dos povos que formaram nosso País, é a única forma de nos levar adiante para seguirmos lutando por uma resistência coletiva. Em pleno 2022, com tantos direitos sendo negados e atropelados, resistir e lutar por dias melhores se tornou mais que um sentimento, bandeira ou necessidade — se tornou uma obrigação.
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